Prefácios Organon da arte de curar (Samuel Hahnemann)

Prefácio da 1ª edição

De acordo com o testemunho de todos os tempos, não há mister mais unanimemente considerado uma arte conjectural do que a medicina. Consequentemente, nenhum domínio tem menos direito do que ela de recusar inquérito que investigue se está bem fundamentada, tanto mais que dela depende a saúde do homem—seu mais precioso tesouro na terra.

Considero resultar em honra para eu ser o único que a submeteu, nestes últimos tempos, a uma investigação honesta e criteriosa e comunicou suas convicções em escritos publicados, ora com, ora sem o meu nome.

Nessa investigação encontrei o caminho da verdade, mas tive de palmilhá-lo sozinho, muito longe da estrada comum da rotina médica. Quanto mais avançava, de verdade em verdade tanto mais se afastavam minhas conclusões do velho edifício, que, construído com opiniões, somente de opiniões se mantinham.

Os resultados de minhas convicções estão expostos neste livro.

Resta ver se os médicos, que pretendem agir honestamente para com a sua consciência e o seu semelhante, vão apegar-se à teia perniciosa de conjecturas e caprichos ou abrirão os olhos à verdade salutar.

Devo admitir o leitor de que indolência, apego ao conforto e obstinação excluem do altar da verdade serviço eficiente e somente isenção de preconceitos e zelo incansável qualificam para o mais sagrado de todos os misteres humanos –a pratica do verdadeiro sistema médico. O médico que nesse espírito inicia seu trabalho assimila-se diretamente ao Divino Criador, cuja criatura humana ajuda a preservar e cuja aprovação o torna três vezes bendito.

(1810)

Prefácio da 2ª edição

Os médicos são meus irmãos – nada tenho pessoalmente contra eles --- e a arte médica é o meu objetivo.

Cabe-me indagar se a medicina, como até aqui ensinada, procedeu das idéias, ilusões e fantasias de seus professores ou derivou da natureza.

Se meramente o produto de sutilezas especulativas, máximas arbitrárias, práticas tradicionais e deduções caprichosas, ela é e permanece uma nulidade, conte embora milhares de anos e ostente condecorações de todos os reis e imperadores da terra.

A verdadeira arte de curar é, por natureza, pura ciência experimental. Pode e deve repousar em fatos claros e fenômenos perceptíveis, pertencentes à sua esfera de ação, pois todos os elementos de que trata são clara e satisfatoriamente cognoscíveis pelos sentidos, através da experiência. O conhecimento da doença a tratar, o conhecimento dos efeitos dos medicamentos, como empregar esses efeitos, verificados, das drogas, na remoção das doenças - tudo isso só a experiência adequadamente ensina. Seus elementos só podem derivar de experiências e observações puras. Ela não ousa dar um simples passo fora da esfera de experiências e experimentos puros e bem observados, evitando tornar-se uma nulidade, uma farsa.

Mas, que toda a arte médica como ate aqui praticada nestes 2500 anos, embora o tenha sido, por falta de coisa melhor, por milhões de médicos, muitos dos quais de mentalidade séria e elevada, é ainda, sob todos os respeitos, coisa extremamente estúpida, inútil e completamente nula, prova-se pelas seguintes considerações, poucas e indiscutíveis.

A razão, sem ajuda, nada pode saber por si (a priori); não pode, só por si, estabelecer conceito sobre a natureza das coisas sobre causa e efeito; toda e qualquer de suas conclusões deve sempre basear-se em evidencias palpáveis, em fatos e experiências, se quiser extrair a verdade. Se, na sua operação, desviar-se um único passo, da orientação do perceptível, ela perder-se-a na região ilimitada da fantasia e da especulação arbitrária – mãe de ilusões perniciosas e absoluta nulidade.

Nas ciências puramente experimentais, na física, química e medicina, a razão meramente especulativa não pode, por conseguinte, ser ouvida. Lá onde aja por si, degenera em fantasias e especulações vazias e produz somente hipóteses arriscadas que, milhares de vezes, são e por sua própria natureza devem ser ilusões e falsidades.

Tal tem sido até aqui a esplêndida prestidigitação da chamada medicina teórica, em que concepções a priori e sutilezas especulativas criaram uma porção de escolas orgulhosas, que apenas mostram o que cada fundador sonhou sobre coisas que não podem ser conhecidas e são inúteis no tratamento das doenças.

Desses sublimes sistemas, pairando bem acima de toda a experiência, a prática médica nada obteve de aproveitável, como tratamento efetivo. Assim, prosseguiu confiantemente o seu curso à cabeceira dos doentes, de acordo com as prescrições tradicionais dos livros que dizem como os médicos têm até aqui tratado e de conformidade com os métodos de suas autoridades práticas, indiferente aos ensinamentos da experiência guiada pela natureza, indiferente às verdadeiras razões do tratamento e perfeitamente satisfeita com a chave de uma prática fácil—o livro de receitas.

Um exame sadio, consciencioso e sem preconceitos desse assunto confuso mostra claramente que aquilo que até aqui existiu com o nome de “arte médica” era mera invenção pseudo-científica, remodelada de tempos em tempos para ajustar à moda que prevalece em sistemas médicos, como o chapéu de Gellert na fábula e, no que diz respeito ao tratamento da doença, o mesmo método, cego e pernicioso.

Uma arte de curar, conforme a natureza e à experiência, não existia. Tudo na medicina tradicional era resultado de arte e imaginação, sem fundamentação na experiência, apenas adornada com os atavios da probabilidade.

O objeto do tratamento (a doença) era fabricado e posto em ordem pela patologia. Dispunha-se arbitrariamente sobre quais doenças deveriam existir, sobre quantas e quais de suas formas e variedades. Ora vejam! A serie inteira de doenças, produzidas em inumeráveis e sempre imprevisíveis variedades pela Natureza infinita, em seres humanos expostos a milhares de condições diferentes, o patologista impiedosamente reduz a mero punhado de moldes retalhados e ressequidos.

Os sabichões definem doenças a priori e atribuem-lhes substratos transcendentais não justificáveis pela experiência. Poderá jamais a experiência, pura e límpida, sancionar sonhos tão fantásticos? Não! Eles afetaram uma penetração no intimo das coisas, nos processos vitais invisíveis, que nenhum mortal pode possuir.

Então para determinar algo positivo quanto aos instrumentos de cura, supunham-se os poderes dos diferentes medicamentos da matéria medica pelas suas propriedades físicas, químicas ou outras qualidades desconexas, pelo cheiro, gosto, aspecto exterior – e, principalmente, por experiências impuras à cabeceira dos enfermos, onde se prescreviam somente misturas medicamentosas, no tumulto dos sintomas mórbidos para casos de doenças imperfeitamente descritos. Vejam só! O poder dinâmico e espiritual de alterar a saúde do homem, poder recôndito no intimo invisível dos medicamentos e nunca manifesto pura e verdadeiramente senão pelos seus efeitos no homem são, foi-lhes atribuído arbitrariamente sem interrogar os próprios medicamentos por esse único meio admissível de experimento puro e sem esperar pelas respostas, quando assim questionados!

Aí então, a terapêutica ensinava como aplicar esses medicamentos, de propriedades conjecturadas, atribuídas ou imaginadas , à suposta causa fundamental da doença ou a simples sintomas , de conformidade com a regra contraria contrariis do forjador de hipóteses Galeno e em direta oposição à natureza. Considerava-se essa doutrina mais do que suficientemente estabelecida, se em seu abono se pudessem citar eminentes autoridades.

Todas essas doutrinas artificiais, depois de ligadas entre si por toda a sorte de deduções falsas e ilógicas, eram então fundidas em moldes escolásticos pela nobre arte de que se devota à divisão, subdivisão e tabelamento e... pronto! O artigo fabricado, a arte médica, está pronto par uso—a coisa mais oposta à natureza e à experiência que é possível conceber, uma estrutura edificada inteiramente com as opiniões, de espécies várias, de milhares de mentalidades, diferentemente constituídas. Em todas as suas partes esse edifício é pura nulidade, lamentável ilusão, eminentemente própria para por em perigo a vida humana pelos seus métodos de tratamento, contrario cegamente ao fim em vista, incessantemente ridicularizado pelos homens mais sábios de todos os tempos, oprimido pela injuria de não ser o que afirma ser e de não ser capaz de cumprir o que promete.

Por outro lado, uma reflexão sóbria e sem preconceitos convencer-nos-à facilmente de que, manter visão correta sobre cada caso de doença a curar, obter conhecimento acurado do verdadeiro poder das drogas, de que, empregá-las por um plano adaptado a cada condição mórbida e administrá-las em doses apropriadas – de que, em suma, a verdadeira arte de curar – nunca poderá ser produto de raciocínios aprazíveis e opiniões ilusórias, mas, os requisitos para o seu exercício, tanto os materiais como as regras, somente se descobrirão pela devida atenção à natureza por intermédio de nossos sentidos, por observações honestas e cuidadosas e por experimentos conduzidos com toda a pureza possível e de nenhuma outra maneira: que seja rejeitada toda a mescla falsificada de sentenças arbitraria e se rebusque o único meio proporcionado ao valor, alto e precioso, da vida humana.

Resta ver se, pelo meu labor consciencioso nesse sentido, foi encontrada a verdadeira arte de curar.

Leipzig, fins do ano de 1818.

Prefácio da 3ª edição

Nos cinco anos decorridos após a publicação da segunda edição, a verdade da arte homeopática de curar encontrou tanta aceitação por médicos, próximos e distantes, que já não poderá ser obscurecida e muito menos extinta pelas publicações injuriosas, que, entretanto, não faltam. Regozijo-me com os benefícios que ela já proporcionou e antecipo, com intenso prazer, embora eu já não esteja aqui embaixo, os dias não distantes em que uma futura geração da humanidade faça justiça a essa dádiva de um Deus clemente e se beneficie com os meios abençoados que Ele proveu para o alívio dos seus sofrimentos físicos e mentais.

Consegui-se grande auxilio no desenvolvimento da boa causa no estrangeiro com a boa tradução francesa, da última edição, recentemente publicada com grande sacrifício por esse filantropo genuíno e meu erudito amigo — o Barão von Brunnow. Ele enriqueceu-a com um prefácio que traz uma exposição da arte homeopática de curar e seu histórico, ao mesmo tempo em que serve de introdução ao estudo da própria obra.

Nesta terceira edição, não me abstive de fazer quaisquer alterações e emendas sugeridas por conhecimentos ampliados ou tornadas necessárias por subseqüente experiência.

Köthen, Páscoa, 1824.

Prefácio da 4ª edição

Se essa natureza que se basta a si mesma nas doenças, que os médicos da escola tradicional acreditam ser a incomparável arte de curar, fosse fiel imitação do mais elevado objetivo médico, a grande Natureza em si e por si, isto é, a voz de inefável sabedoria do grande Artífice do Universo infinito, sentir-nos-íamos compelidos a sermos guiados por essa voz infalível, apesar de embaraçados para compreender por nós médicos, pela nossa interferência artificial com medicamentos, perturbaríamos ou nocivamente agravaríamos essas operações, supostamente incomparáveis, do auto-auxílio da natureza nas doenças (vis medicatrix). Mas o caso está longe disso! Essa natureza, cujo auto-auxílio à escola médica tradicional alega ser a incomparável a arte de curar, a única digna de imitar-se, é meramente a natureza individual do homem orgânico, não é senão a força vital, instintiva, irracional, irrefletida, sujeita às leis orgânicas do nosso corpo, que o Criador ordenou mantivesse as funções e sensações do organismo em condições maravilhosamente perfeitas, desde que o homem continue em boa saúde, mas não foi destinada nem adaptada para boa restauração da saúde, uma vez perturbada ou perdida. Pois, tenha nossa força vital sua integridade prejudicada por influências nocivas de fora, esforça-se ela, instintiva e automaticamente, por libertar-se desse transtorno adventício (doença) por processos revolucionários. Esses mesmos esforços são eles próprios, doença, uma segunda e diferente doença, que se substitui à original. A força vital produz, repito de acordo com as leis da constituição do organismo a que está sujeita uma doença de espécie diferente, destinada a expelir a doença atacante, esforçando-se para consegui-lo pela dor, por metástase e assim por diante, mas principalmente por evacuações e sacrifício de boa parte dos constituintes fluidos e sólidos do corpo, com resultados difíceis, nocivos, muitas vezes dúbios e frequentemente mesmo desastrosos.

Não estivessem os homens de todos os tempos cientes dessa imperfeição, dessa não rara insuficiência dos esforços cegos da força vital, instintiva e irrefletida, nas tentativas de auto-auxilio nas doenças, não ansiariam tanto, não se empenhariam tão zelosamente em ajudar-se eficientemente, pelo emprego de melhores recursos medicamentosos, com o fim de terminar o processo mórbido de maneira mais expedida e segura, restaurando assim a desejada saúde tão rapidamente quanto possível - em outras palavras, não teriam envidado esforços para descobrir uma arte de curar.

Mas como o que tem sido até aqui chamado “arte de curar” é mera (imperfeita) imitação dos esforços e operações, infelizes, inúteis e não raramente nocivas da instintiva e irrefletida força vital (erradamente chamada natureza), quando abandonada a si mesma na doença, ser–me-á concedido, penso, que antes de mim não tinha sido descoberta a verdadeira Arte de curar.

Mas que a homeopatia é essa Arte de curar, até agora procurada em vão, seus princípios fundamentais o ensinam, provam-no suas realizações.

Köthen, janeiro de 1829.

Prefácio da 5ª edição

Nota do tradutor:- - Sendo a sexta edição do Organon um exemplar da quinta edição, com entrefolhas do próprio punho de Hahnemann, nota-se que, quanto aos dois prefácios consecutivos, o Mestre pouco modificou. Cotejando cuidadosamente os prefácios da quinta e da sexta edições e não levando em conta alterações mínimas, só de estilo e redação, pareceram-nos de interesse a tradução só da parte final. Nessa parte final, verificam-se duas diferenças de certa monta: 1) em certo trecho que, em si, apresenta pequenas modificações na forma, sem mudança no sentido, há uma chamada, com o respectivo rodapé, que só aparece na quinta edição; 2) o trecho a seguir, mais longo, bem no fim, também não foi incluído na sexta edição.

Daremos aqui esses dois trechos, com a chamada intercalada entre eles, em tipos menores, orientação que será adotada, para maior facilidade de leitura, em toda a obra.

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Assim a homeopatia é um sistema médico perfeitamente simples, sempre fixo nos princípios e na prática. Esta última, se corretamente apreendida, será exclusiva (e só assim útil), como a doutrina em que se baseia. Assim como a doutrina deve aceitar-se na sua pureza, assim também deve ser praticada puramente: todo o extravio (*), de volta à perniciosa rotina da velha escola (tão oposta a ela como o dia e a noite) é totalmente inadmissível, do contrário deixa de merecer o honroso nome de homeopatia.

(*) Lamento, portanto o conselho, de sabor alopata, que dei outrora, sobre a aplicação nas costas, em doenças psóricas, de um emplasto resinoso para provocar prurido e sobre o emprego de levíssimas faíscas elétricas, em afecções paralíticas. Pois, como ambas essas aplicações foram raramente proveitosas e serviram de pretexto aos homeopatas híbridos para as suas transgressões alopáticas, eu arrependo-me de tê-las proposto e por estas palavras solenemente me desdigo, tanto mais que, desde essa época o nosso sistema homeopático aproximou-se tanto da perfeição que elas atualmente já não são necessárias.

Que alguns médicos desorientados, que gostariam de considerar-se homeopatas, enxertem algumas imperícias alopáticas, mais familiares a eles, no seu tratamento homeopático nominal, é isso devido à ignorância da doutrina, preguiça, desrespeito à humanidade sofredora e ridícula presunção. Alem de demonstrar imperdoável negligencia na pesquisa do melhor especifico homeopático, tem isso origem muitas vezes numa baixa paixão pelo ganho e outros motivos sórdidos. ---e os resultados?--- Não curam doenças sérias e importantes (e a homeopatia pura e cuidadosa o faz) e enviam os doentes àquele lugar de onde ninguém volta, enquanto os amigos consolam-se com a reflexão de que tudo (inclusive todo o nocivo processo alopático!) foi feito para o falecido.

Köthen, 28 de março de 1833.

Prefácio da 6ª edição

Para se ter uma noção geral do tratamento das doenças, administrado de acordo com a antiga medicina (alopatia), pode-se dizer que ela pressupõe, às vezes, a existência de um excesso de sangue (pletora nunca existente), às vezes, de princípios morbíficos e acrimônias; retira, portanto, o sangue necessário à vida, e se esforça por varrer a matéria morbífica imaginária, ou, então, desviá-la para outra parte (por meio de vomitivos, purgativos, sialagogos, sudoríficos e diuréticos, vesicatórios, cautérios, exutórios, etc.) na ilusão de que assim a doença será amainada materialmente erradicada; aumenta, porém, destarte, os sofrimentos do doente e, por esse meio, e pelo emprego de agentes dolorosos, priva o organismo das forças e dos sucos nutritivos necessários à cura. Ataca o corpo com grandes doses, freqüentemente contínuas e renovadas, de medicamentos heróicos, cujos efeitos prolongados e, às vezes, assustadores lhe são desconhecidos, e os quais ela parece propositadamente tornar desfigurados, acumulando em uma só formula vários dessas substâncias desconhecidas. Assim, pelo uso prolongado desses medicamentos, ela acrescenta ao organismo doente novas doenças medicinais ainda em parte incuráveis. Empenham-se, para manter-se em crédito junto aos doentes (*), em empregar, onde puder meios que, pela lei de oposição (contraria contrariis), suprimem e aliviam (paliativos), por algum tempo, os sintomas, mas que deixam persistir a razão dessas queixas (a própria doença), e ainda mais fortes e mais agravados. Ela considera, injustamente, os males que se localizam nas partes exteriores do corpo como sendo puramente locais isolados, independentes, e acreditam te-los curado, quando desapareceram por tópicos, de modo que o mal interno é forçado a irromper em uma parte mais nobre e mais crítica e em grau mais grave. A velha escola médica, quando não mais sabe o que fazer contra a doença que se recusa a ceder, ou que vai se agravar, trata de alterá-las, às cegas, por meio de um agente chamado “alterans”, como, por exemplo, o calomelano, sublimado corrosivo que solapa a vida, e com outros meios coadjuvantes em doses ponderáveis.

(*) Com o mesmo objetivo, o alopata experiente inventa, antes de tudo um nome determinado, preferentemente grego, para designar o mal do doente, a fim de fazê-lo crer que já conhecia a doença há muito tempo, como a um velho conhecido, e que assim seria o único capaz de curá-la.

Parece ser o alvo funesto da velha medicina tornar pelo menos incuráveis , se não mortais, a maioria das doenças, transformando em pacientes crônicos os já debilitados pelo enfraquecimento e por tormentos contínuos , pela adição de novas afecções médicas destrutivas (atualmente denominadas doenças iatrogênicas), -- e, quando essa prática perniciosa se tornar um hábito e ficarmos insensíveis às advertências da consciência, então isto é, de fato, um negócio muito fácil!

Contudo, para todas essas operações nocivas, o médico da velha escola, em geral, pode apontar as suas razões, que, porém, se baseiam apenas em preconceitos de seus livros e mestres, e na autoridade deste ou daquele eminente médico da velha escola. Mesmo os métodos de tratamento mais opostos e mais insensatos encontram ali sua defesa, a sua autoridade—por mais alto que fale contra eles o efeito desastroso. É só com o tratamento dado pelo velho médico que se convenceu finalmente, aos poucos, e após muitos anos de ações más, da natureza perniciosa de sua pretensa arte, e que trata as mais graves doenças apenas com mistura de xarope de morango e água de tanchagem (i.e., nada) , que piora e morre um menor numero de pacientes .

Essa arte de não curar que há muitos séculos está firmemente estabelecida no poder de decidir, arbitrariamente, sobre a vida e a morte dos doentes, e que nesse período encurtou as vidas de dez vezes mais pessoas do que as mais mortíferas guerras tornaram muitos milhões de pacientes mais doentes e mais miseráveis do que foram anteriormente--- essa alopatia eu elucidei mais detalhadamente na introdução das edições anteriores deste livro. Agora, considerarei apenas seu exato oposto, a verdadeira arte de curar descoberta por mim (agora mais perfeita). (**) Ela (a homeopatia) é bem diferente. Pode facilmente convencer a todos que refletem, de que as doenças humanas não são causadas por matéria alguma, nenhuma acrimônia, i.e., por matéria morbífica alguma, mas que elas são unicamente transtornos imateriais (dinâmicos) da força imaterial (o principio vital, a força vital), que anima o corpo humano. A homeopatia sabe que uma cura só se pode verificar pela reação da força vital contra o remédio apropriado, e que a cura se opera tanto mais segura e rapidamente quanto mais sua força vital ainda prevalece no doente.

(**) A homeopatia jamais derrama uma gota sequer de sangue, não administra eméticos, purgativos, laxativos ou diaforéticos, não cura mal externo por meios externos, não prescreve banhos minerais quentes ou desconhecidos ou clisteres medicamentosos, não aplica cantáridas ou sinapismos, nem sedenhos ou cautérios, não excitam ptialismo, não queima com moxa ou ferro ardente até aos ossos, etc., mas sim dá com a sua própria mão um só medicamento simples feito por ela mesma e bem conhecido, não dá misturas, e jamais acalma a dor com ópio, etc.

A homeopatia evita, portanto, qualquer enfraquecimento, por menor que ele seja (***), e também, o quanto possível, toda excitação de dor, pois esta também diminui as forças; pelo quê, ela emprega para a cura apenas aqueles medicamentos cujo poder de modificar e de desequilibrar (dinamicamente) a saúde, ela conhece com exatidão, e escolhe um cujas forças modificantes (a doença medicinal) são capazes de remover a doença natural em questão por semelhança (similia similibus) , e esse é administrado ao paciente em forma simples , em doses fracas (tão pequenas que, sem causar dor ou enfraquecimento, são, não obstante, suficientes para remover o mal natural); daí se conclui que sem enfraquecer, prejudicar ou torturar o doente, a doença natural é extinta, e o doente, já durante a convalescença , fortalece-se e assim fica curado - algo aparentemente fácil, mas que requer meditação e que é penoso e difícil, mas que estabelece os doentes, em pouco tempo, sem inconvenientes, e de maneira completo—e assim se torna uma tarefa salutar e abençoada.

(***) Dão-se exemplos para provar que curas surpreendentes obtidas nos tempos passados sempre foram devidas a remédios basicamente homeopáticos e encontrados pelo médico por acaso e contrárias aos métodos terapêuticos então predominantes.

A homeopatia é, então, uma arte de curar muito simples, ficando sempre fixa em seus princípios, bem como em sua prática. Como a doutrina na qual se baseia, ela se apresenta, se bem a compreendermos, como um todo completo, portanto útil. Tal pureza na doutrina, bem como na prática, deveria ser evidente, e qualquer retorno à perniciosa rotina da velha escola (que difere como o dia da noite) deveria cessar completamente de vangloriar-se diante do nome honrado da Homeopatia.

Paris, fins de fevereiro de 1842.

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